Museu virtual resgata ancestralidade cigana e registra o legado de Cláudio Iovanovitchi
Autor: Nayara Rosolen - Analista de Comunicação
Um espaço de conexão e compreensão mútua. Essa é a proposta do Museu Virtual de Memórias da Imigração Cigana em Curitiba (PR), lançado pelo Museu Paranaense (MUPA) em 8 de abril de 2025, data em que comemora-se o Dia Internacional do Povo Cigano.
A exposição foi idealizada pela pesquisadora e líder cigana Hayanne Iovanovitchi e construída a partir das memórias do avô, Cláudio Domingos Iovanovitchi. Fundador e presidente da Associação de Preservação da Cultura Cigana no Brasil (Apreci), o produtor cultural também se tornou uma importante figura nas artes, em especial no teatro curitibano. O ativista faleceu de forma súbita dois dias depois da aprovação final do projeto e dez dias antes do lançamento oficial, aos 67 anos, em 28 de março.
Hayanne conta que Cláudio quis fazer da internet a própria pátria, em busca de conectar os povos Rom, Sinti e Calon de todo o mundo, já que historicamente não possuem o reconhecimento e valorização de suas origens. “É um momento de muita dor, mas é também um momento de celebrarmos a vida desse grande homem que foi o meu avô. E todo o reconhecimento e a presença política dos povos ciganos que devemos a ele”, declara a neta.
Na tarde de 7 de abril, Hayanne participou da Roda de Conversa sobre Memórias da Imigração Cigana em Curitiba: Homenagem a Cláudio Domingos Iovanovitchi, ao lado da mãe e pesquisadora cigana, Taty Iovanovitchi. Ambas representaram Cláudio, que se preparava para a agenda de compromissos para apresentação do museu virtual. Por isso, a programação seguiu como uma homenagem.
Organizada pela Escola Superior de Educação, Humanidades e Línguas (ESEHL) da Uninter, a roda de conversa foi conduzida pela professora Maristela Gripp. A abertura foi realizada pela diretora da ESEHL, Dinamara Machado, e pela coordenadora da área de Línguas e Sociedade, Crisbelli Domingos.
Maristela iniciou a solenidade com destaque para a dedicação de Cláudio “à preservação e valorização da cultura cigana no Brasil, sendo uma voz na luta por direitos e visibilidade dessa comunidade. O seu trabalho foi incansável e ajudou a combater o preconceito e a manter viva as tradições dos povos ciganos”.
“O Cláudio vai ser sempre lembrado pelo bom senso, pelo poder político de agregar pessoas e não de desagregar. E, ao mesmo tempo, agregar pessoas em prol da causa dele: o povo Rom, manter as características de um povo que está espalhado pelo mundo inteiro (…)”, garante Dinamara.
Crisbelli acredita que falar sobre direitos humanos é falar sobre justiça e reconhecer séculos de viabilização de preconceitos e de violações sistemáticas. A docente também entende que só haverá democracia quando povos tradicionais, como os ciganos, forem respeitados em sua cultura e liberdade de ser e existir. “Com orgulho, sem medo e com voz”, palavras ditas por Cláudio e relembradas em sua homenagem.
Durante a conversa, Hayanne e Taty contaram um pouco da trajetória da família, além de explicarem as diferenças entre as etnias e desmistificarem preconceitos relacionados a esses povos. A transmissão do evento segue disponível para livre o no Youtube.
Seis gerações de história
Originários da Índia, em consequência de preconceito e perseguição, os ciganos se dispersaram para o leste europeu e de lá migraram até chegar em solo brasileiro. Apesar do termo de senso comum e utilizado para identificá-los, não se reconhecem como ciganos, mas pela própria etnia.
Pertencente aos Rom, os avós de Cláudio, Duchan Iovanovitch e Lepossava Jovanovitch, embarcaram no navio Júlio César, da Iugoslávia rumo ao Brasil, em 1927. Foram 14 dias e noites no oceano, com a única motivação de sobrevivência.
A história em Curitiba remonta a 1934. Com a chegada, a família se integrou e contribuiu com a sociedade curitibana em diversos setores sociais, econômicos e culturais. Os Iovanovitchi se conectaram a espaços tradicionais da capital paranaense, como o Esporte Clube Pinheiros, Clube Água Verde e o Jockey Club, embora ainda hoje permaneçam invisíveis para muitos.
Tamanha é a presença das etnias Rom e Calon e da luta para o reconhecimento e valorização no estado, que o Paraná foi o primeiro a instituir o Dia Estadual dos Povos Ciganos, celebrado todo 23 de setembro, pela Lei nº 12.873/2000. A data marca o falecimento do filho de Cláudio, o Cláudio Domingos Iovanovitchi Junior, acometido por um AVC, aos dez anos de idade, em 1999. Apenas em 2006 é que o governo federal instituiu o Dia Nacional dos Povos Ciganos, em 24 de maio, através do Decreto nº 10.841/2006.
Da ausência de narrativas autênticas, de pessoas da própria comunidades, como protagonistas e não como objetos de pesquisa, surgiu a necessidade de registrar a memória e trajetória para além da oralidade. Com a utilização da tecnologia, que permite o compartilhamento para o maior número de pessoas.
“Para o nosso povo, um espaço que registra e valoriza o protagonismo de nossa memória e de nossas histórias é muito valoroso, pois conseguimos fazer com que vejam que estamos vivos, presentes nos mais diversos espaços e que a nossa história deve ser reconhecida”, afirma a divulgação.
O lançamento presencial aconteceu no MUPA, na noite de 8 de abril, com Hayanne e a antropóloga do MUPA, Josi Spenassatto. Foi o único momento em que algumas peças foram expostas de forma física. Além disso, a família fez a doação da agem de navio de Duchan, peças de roupas tradicionais ciganas e a tradução do aporte para o MUPA, para a representação da ancestralidade no museu.
O projeto foi aprovado e recebeu aporte da Lei de Incentivo à Cultura da Fundação Cultural de Curitiba (FCC). Possui cerca de 180 peças, entre as quais contém documentos históricos, fotografias, vídeos e relatos exclusivos, com materiais sobre a chegada dos Rom no Paraná.
“De joelhos jamais”
A frase sempre dita por Cláudio é uma das memórias que fica para a filha, Taty Iovanovitchi. “Ele nunca teve medo. Então, ele deixa para nós esse espírito de liderança e que a gente precisa continuar (…) através da arte e da cultura, não tem outra forma. O preconceito se forma de criança, então acho que através da geração de conhecimento, como dizia ele, é que a gente vai conseguir mudar a forma como a sociedade nos vê”, salienta
Com mais de 40 anos de ativismo, Cláudio é lembrado como “uma voz fundamental na luta por direitos e visibilidade da comunidade e cultura cigana no Brasil”, afirma a publicação realizada pelo Jornal Plural.
Em nota, a Secretaria da Cultura do Estado do Paraná e o Centro Cultural Teatro Guaíra afirmaram que “seu trabalho incansável ajudou a construir pontes, combater preconceito e manter vivas as tradições de um povo que faz parte da história do país”.
“Viveu com muita presença e intensidade sua ancestralidade e até seus últimos dias lutou incansavelmente pelo reconhecimento e valorização dos artistas”, escreveu o Sindicato dos Artistas e Técnicos em Espetáculos de Diversões no Estado do Paraná (SATED/PR) em postagem do Instagram.
“Do meu avô, eu herdei a luta, a garra, a paixão pelo meu povo. Espero seguir assim, com ele vivo, a voz dele ecoando através de mim, porque ele tinha orgulho de nos ver ocupando esses lugares e percorrendo o mesmo caminho que ele, de ver que a história dele não ia parar nele. Espero carregar essa esperança em dias melhores, para conseguir ar isso para os meus mais novos e conseguirmos seguir lutando pelo nosso povo”, conclui Hayanne.
Pioneirismo e inclusão
Em parceria inédita de inclusão com a Confederação Brasileira Cigana (CBC), a Apreci e o Coletivo das Mulheres Ciganas do Brasil (COMCIB), a Uninter foi pioneira ao conceder 20 bolsas de estudos para os povos ciganos. Foram dez bolsas para a graduação e dez bolsas para a Educação de Jovens e Adultos, todas na modalidade de educação à distância (EAD), o que possibilitou o ingresso de pessoas de todo o país.
“A sensibilidade da Uninter é um divisor de águas. Eu espero, sinceramente, que os ciganos que estão inscritos aproveitem, porque é um novo tempo para o cigano brasileiro. A Uninter dá um o à frente e mostra para esse país multiracial e pluricultural como se faz com boa vontade”, afirmou Cláudio durante a 1ª Calourada da Diversidade da Uninter, que aconteceu em setembro de 2024.
As diretrizes para o atendimento de educação escolar para populações em situação de itinerância foram definidas há pouco mais de uma década, a partir da Resolução no Conselho Nacional de Educação e da Câmara de Educação Básica (CNE/CEB) nº 3, de 16 de maio de 2012, com base no Parecer CNE/CEB nº 14/2011.
Ainda sem uma legislação específica para a concessão de bolsas em instituições de ensino superior privadas, apenas em 1º de agosto de 2024 foi instituído o Plano Nacional de Políticas Públicas para os Povos Ciganos, através do Decreto nº 12.128/2024. Por meio da iniciativa da Uninter, a possibilidade de estudo incentiva e ajuda crianças, jovens e adultos para que tenham novos anseios e aspirações. As lideranças percebem a importância da iniciativa para a socilização, respeito e inclusão.
“Levar adiante o projeto com o povo Rom significa que a Uninter continua inserida na temática da diversidade. Nós somos uma instituição de ensino que agrega as minorias, os diferentes discursos, mas que, principalmente, trabalhamos com direitos humanos, onde o R de respeito prevalece, onde sabemos que para fazer com que os direitos humanos aconteça, precisamos ter ações. Não são discussões apenas, são ações. É uma instituição de ensino que dialoga com a sociedade, mas que tem ações reais, práticas de continuidade e de preservação da dignidade humana, o que leva à emancipação”, conclui a diretora Dinamara.
Mais informações sobre o Museu Virtual Romanô, podem ser encontradas no perfil do Instagram do projeto.
Autor: Nayara Rosolen - Analista de ComunicaçãoEdição: Larissa Drabeski
Créditos do Fotógrafo: Natália Jucoski